Como
manter princípios e fiéis no mundo moderno individualista?
A
moral e os costumes, a arte e a ciência, a política e até
a economia, toda a bagagem cultural que a humanidade carrega hoje foi tocada e,
freqüentemente, moldada pelo cristianismo. Não houve na história
personagem mais influente do que o pregador que se dizia filho de Deus. Seus ensinamentos
e a religião fundada em seu nome triunfaram por vinte séculos, enfrentando
e vencendo crises com uma força que para os fiéis só pode
ter inspiração divina. É uma história respeitável,
para dizer o mínimo.
No entanto, o novo milênio
iniciado há pouco traz desafios talvez ainda maiores para a sobrevivência
e a predominância do cristianismo. Especificamente, apresenta grandiosos
obstáculos ao seu braço mais vigoroso – e rigoroso -, a Igreja
Católica. Como será daqui para a frente? Como serão a face
e a voz de Jesus Cristo – e de sua Igreja mais antiga - num mundo em furiosa
transformação tecnológica e de costumes?
O
primeiro obstáculo apontado por especialistas não é novo,
e nunca deixará de espreitar a cristandade em qualquer época e local:
a chamada secularização, fenômeno pelo qual as crenças
e instituições católicas deixam de pertencer a uma esfera
puramente religiosa – ou mística - para ganhar contornos leigos,
e, muitas vezes, filosóficos. A história cristã apresenta
diversos exemplos concretos de secularização, da tomada dos bens
da Igreja pela nobreza alemã protestante no século XVI até
a pregação dos líderes da Teologia da Libertação
no Brasil dos anos de 1960, quando a religião foi usada na formulação
de teorias sociopolíticas.
Num sentido mais
genérico, a secularização que preocupa o Vaticano é
a tendência que as pessoas têm - hoje em dia mais do que nunca, talvez
- de ignorar os ensinamentos da Igreja. A indiferença de quem ouve é
o pavor de todos os doutrinadores. É muito comum encontrar fiéis
que querem ser bons católicos sem ter de seguir à risca cada um
dos ditames dos padres e sacerdotes. Eles se afirmam cristãos convictos
ao mesmo tempo em que usam métodos anticoncepcionais, fazem aborto ou casam-se
e divorciam-se ininterruptamente, por exemplo.
Soma-se
a este problema interno as pressões exercidas por boa parte da sociedade
ocidental - católicos e não católicos – para que a
Igreja “se modernize”, seja mais coerente com situações
corriqueiras nos dias de hoje. No passado, o Vaticano afastou as mulheres do sacerdócio
e proibiu os padres de se casarem. Atualmente, isso começa a parecer para
muitos devotos um dogma que engessa a fé em regulamentos ultrapassados.
O fim do celibato clerical já chegou a ser apontado com uma saída
para evitar escândalos como o dos padres pedófilos, que infestaram
a igreja dos Estados Unidos e sabe-se lá mais de onde.
Num
horizonte mais distante, há ainda os pedidos de aceitação
do casamento gay – já legalmente realizado em alguns países.
Dentro do catolicismo, a questão que não tem, ao menos hoje, muitas
perspectivas de ser resolvida em breve. Certa vez, ao encontrar a diretora executiva
da ONU, o papa João Paulo II afirmou a ela, com o dedo em riste: "Uma
família é um marido, uma mulher e suas crianças. E o casamento
é a única base de uma família. Os homossexuais e as lésbicas
não são famílias".
Como
se não bastasse o efeito provocado no catolicismo por estas questões
contemporâneas, a Igreja ainda se vê às voltas com o complexo
desafio de manter a unidade da doutrina cristã ao mesmo tempo que faz aberturas
na direção de outras crenças. Como admitir a existência
de outros credos sem perder a fé na hegemonia de seus princípios?
A bandeira do ecumenismo nunca foi tão levantada dentro e fora do Vaticano,
o que levou o clero romano a repensar sua postura sobre o tema durante o século
XX. Houve até acenos de conversas com os protestantes, numa suposta tentativa
de restabelecer a unidade que uma vez existiu entre as duas correntes. No entanto,
estes fracos sinais não escondem os problemas de convivência que
existem – mais em alguns pontos do planeta do que em outros – entre
católicos e judeus, ou entre católicos e muçulmanos, por
exemplo.
O ambiente de ampla liberdade religiosa
que predomina na maioria dos países cristãos – mais nos protestantes
do que nos católicos - permitiu, por exemplo, que o islã construísse
uma de suas maiores mesquitas em plena Roma dos santos e dos papas. Mas os cristãos
têm de disputar espaço com o islamismo nos países onde ele
predomina. A construção de qualquer templo que não seja uma
mesquita é rigorosamente proibida nos países islâmicos. O
islamismo não se contrapõe apenas ao cristianismo, mas ao pensamento
ocidental como um todo. Tendo a Igreja Católica a importância que
tem no mundo ocidental, ela será sempre uma das primeira instituições
convocadas a discutir as querelas com os muçulmanos.
Todos
os desafios atuais enfrentados pelo Vaticano foram mais do que prenunciados desde
o fim do século XIX. A maior tentativa de reação aos “tempos
modernos” do catolicismo foi a organização do Concílio
Vaticano II, entre 1962 e 1965. O objetivo dessa grande assembléia religiosa
proposta pelo papa João XXIII era dar impulso à dimensão
pastoral da instituição, atenuando o papel inquisitório por
ela desempenhado nos séculos precedentes. O norte dos debates foi o diálogo
com o homem moderno e com as outras religiões, e suas resoluções
foram a principal fonte de inspiração para todos os papas que o
seguiram – o mais notável foi João Paulo II, que nunca se
cansou de evocar o Concílio para justificar suas ações.
Diante
de tantos obstáculos, a Igreja chega ao início do século
XXI procurando afirmar-se como instituição capaz de dar conta de
questões morais e políticas que extrapolam o plano da fé.
Mas, principalmente, inicia o milênio pregando o apego à pureza doutrinária
e à tradição, como estratégia para se impor a um mundo
volátil e de frágeis valores morais. Foi o que fez João Paulo
II, e ó que vem fazendo seu sucessor, Bento XVI. O tempo dirá se
a decisão de seguir por este caminho é capaz de adaptar a religião
à sua época ou se levará a Igreja a um indesejado isolamento.
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